Disputas sobre a condução das finanças públicas remontam às origens do Poder Legislativo. Daí que, das 63 cláusulas da Magna Carta, a primeira espécie de Constituição escrita da Europa, a mais lembrada é naturalmente a cláusula 12. Ela restringia o Rei João, da Inglaterra, a impor novas taxas feudais sem um consentimento prévio de um conselho de membros da nobreza, uma figura análoga ao que hoje chamaríamos de Parlamento.
Redigida em 1215, o texto original da Magna Carta, incluindo a tal cláusula, não parou em pé nem por um ano. Um detalhe de menor importância. Anacronismos à parte, a ideia de que os atos de governantes devem obediência a uma regra explícita, e que um corpo político distinto deve fiscalizar, ratificar ou modificar os seus atos, continua conosco até hoje. Especialmente quando se trata das finanças públicas.
Atualmente, no caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988, somada à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), estabeleceu regras bem claras quanto ao uso do dinheiro público por parte de governantes. No entanto, por trás de todas estas regras que visam constranger os governantes há uma crença, talvez errônea, de que a culpa pela expansão desmedida dos gastos públicos estaria restrita ao Executivo (Presidentes, Governadores e Prefeitos).
Não é uma crença de todo infundada. Devido a restrições constitucionais, a maioria dos projetos de lei com relevante impacto orçamentário de fato advém do Executivo. Além disso, diversos estudos da economia e da ciência política já demonstraram que, em anos eleitorais, gestores públicos tendem a aumentar os gastos, os direcionar para áreas mais “visíveis” ou reduzirem impostos com o objetivo de aumentarem suas chances de reeleição.
Incentivada pelo fato de que no Brasil há eleições de dois em dois anos, governantes alternam entre anos de maior e menor expansão de gastos públicos. Esta prática populista dá luz a um orçamento que não assegura recursos ao longo dos quatro anos, gerando, dentre vários problemas, obras paralisadas e gastos de má qualidade.
A crença, de fato, se sustenta — ao menos em parte, pois, o que vale para o Executivo também vale para o Legislativo. Especialmente hoje em dia, em um cenário em que legisladores têm cada vez mais ampliado o montante destinado às emendas parlamentares. Em 2024, por exemplo, o Congresso Nacional alocará R$ 53 bilhões em emendas, cerca de 1/4 das despesas discricionárias, isto é, de livre destinação.
Embora possamos debater o mérito, o uso estratégico da execução orçamentária e a expansão dos recursos das emendas parlamentares são práticas compatíveis com a Constituição Federal e os diplomas normativos que regem o orçamento público. O mesmo não poderia ser dito do que se costuma chamar de “populismo legislativo”, isto é, a aprovação de leis sabidamente inconstitucionais por parte de membros do Poder Legislativo.
Esta prática, comum em Assembleias Legislativas, mas que também tem chegado ao Congresso, torna-se mais grave quando falamos de propostas legislativas com impacto orçamentário e financeiro. Nesses casos, a brincadeira custa mais caro. Exemplos não faltam, tanto em âmbito federal quanto estadual.
Recentemente, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu parte da lei que prorrogava a desoneração da folha de pagamentos de setores econômicos e municípios, por ausência de estimativa do impacto orçamentário e financeiro da medida, violando obrigação consagrada na Constituição Federal.
Em Pernambuco, a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (ALEPE) discutiu, por mais de 60 dias, o Projeto de Lei Complementar nº 1671/2024, da Governadora Raquel Lyra, que extinguirá as faixas salariais de policiais militares e bombeiros até julho de 2026. Durante estes dois meses, a oposição vendeu a ideia de que seria possível emendar o projeto para antecipar a extinção.
Na verdade, qualquer aluno de primeiro ano do curso de Direito sabe que não se pode aumentar despesa em projeto de iniciativa privativa do Executivo, sob pena de se violar a Constituição Federal e, por simetria, a Constituição Pernambucana. Mas, essa é a lógica do populismo legislativo: no processo, “likes” foram obtidos, promessas foram feitas, e, ao final, o projeto foi aprovado por 41 votos a 1. Quem dirá aos policiais e bombeiros que eles foram enganados?
No fundo, a boa condução das finanças públicas é um tema muito importante para ser deixado somente para o Poder Executivo. Disso sabiam os constituintes e aqueles que trabalharam na feitura da Lei de Responsabilidade Fiscal. Em tempos de populismo legislativo, seria preciso relembrar nossos legisladores de que desde os tempos da Magna Carta há obrigações legais que vinculam todos os Poderes?
Miguel Santos, sociólogo formado pela Universidade de Brasília (UnB) e mestrando em Sociologia pela mesma instituição. Entre 2019 e 2023, foi consultor em relações governamentais no Congresso Nacional. Atualmente, é assessor parlamentar na ALEPE.
Luiz Nagel, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e advogado (OAB/PE 61523). Entre 2019 e 2021, atuou no TCE-SC. Atualmente, é assessor parlamentar na ALEPE.